Coluna de Ciências
O osso ignora os dentes: ainda bem!
Temos 206 ossos no adulto e o conjunto chama-se esqueleto. Osso tem uma
parte dura, mas flexível com líquidos, células, vasos e nervos! Osso é leve, pesa 10%
do corpo e remodela-se todo instante! Por completo, trocamos 7 a 10 vezes o
esqueleto numa vida de 70 anos. Acelerando o vídeo da vida, o esqueleto em
movimento é uma bailarina talentosa!
São 32 dentes permanentes inseridos no osso, mas não remodelam-se. Como o
organismo mantem os dentes “longe” do osso? As aspas indicam uma certa ironia,
pois a distância entre os dentes e o osso varia de 0,2 a 0,4mm. É a espessura de uma
folha de papel e o tecido que envolve as raízes como um papel delicado de presente
chama-se ligamento periodontal. De tão fino, nem se percebe que os dentes se
movimentam enquanto comemos e falamos. Quando vejo aqueles doces na bandeja
embrulhados no plástico dentro de “copinhos” de papel imediatamente penso: o
ligamento periodontal é igual este plástico que não os deixam grudar no papel!
Apesar da delicadeza, o ligamento periodontal liga o dente ao osso de forma
competente e impede que se encostem, mesmo na mastigação em que carga de força é
mega, hiper, plus e super forte! Quando a pessoa tem bruxismo, ou ranger noturno dos
dentes, a força é maior ainda, mas mesmo assim o dente não encosta no osso. A
natureza é linda e eficiente!
O ligamento periodontal é feito de fibras ou micro-cordas de colágeno soldadas
no osso e no dente como redes de ninar que se renovam todo instante. Ao passear pelo
Rio Amazonas, vi aqueles barcos que no lugar de bancos tinham dezenas de redes
com pessoas deitadas. Quem fabrica estas fibras colágenas são células, ou
fibroblastos, que ficam no meio delas. No barco as pessoas nas redes pareciam os
fibroblastos grudados nas fibras que produziram!
Já sei que estás pensando: esse cara é maluco! Patologistas, cientistas,
jornalistas e poetas são assim! Românticos também. Viajam nestas comparações que
são conhecidas como “analogias”. Comparar, refletir e sentir o todo que o rodeia
como se fosse único é deixar-se levar no oferecimento da vida!
Grudadas na raiz, entre as fibras, temos células ou cementoblastos como
pastilhas ou azulejos escondendo os dentes do organismo: ninguém sabe que existem.
Os dentes são iguais os espermatozoides: produzidos às escondidas do corpo. Eles
têm proteínas que nosso sistema imunológico não reconhecem como próprias. Os
cementoblastos são “surdos” aos mediadores e hormônios que regulam o osso,
protegendo o dente da remodelação constante! Viva os cementoblastos.
O osso, como o tempo, não para! Ele tenta e insiste ocupar o fino espaço que o
separa dos dentes. Como o ligamento periodontal resiste e se mantem entre os dois? A
natureza esparramou no ligamento periodontal uma micro-rede de basquetebol de
epitélio, igual ao da pele, que tridimensionalmente assemelha-se às redinhas que
velhas senhoras colocavam para segurar o cabelo! São cordões delicados com quatro
a oito células de largura e 20 células de comprimento dispersos no ligamento. Estes
cordões em rede são os Restos Epiteliais de “Malassez”, um professor da
Universidade de Paris que divulgou entusiasticamente este conhecimento há dois
séculos atrás. Se convidado, ele ia!
Esta micro-rede entre fibras e fibroblastos do ligamento periodontal fica o
tempo todo soltando ou “suando” um líquido ou mediador chamado de EGF ou Fator
de Crescimento Epitelial. Este mediador local estimula constantemente a reabsorção
do osso pelas suas células e impede que o mesmo encoste ou se aproxime
perigosamente do dente. Se isto acontecer é patológico e chama-se Anquilose
Alveolodentária e o dente será remodelado por completo como osso em alguns meses
ou anos, uma situação conhecida como Reabsorção Dentária por Substituição. Vida
longa aos Restos Epiteliais de Malassez!
O ligamento periodontal absorve numa boa as forças da mastigação, bruxismo e
movimento ortodôntico sem sofrer, mas batidas ou pancadas nos dentes, mesmo as
mais leves, podem matar os Restos de Epiteliais de Malassez e levar à anquilose e à
substituição do dente por osso. Mas aí, temos outra história para contar!
(Alberto Consolaro – Professor Titular da USP e Colunista de Ciências do JC)
Foto e legenda
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Animal curioso: vida longa, não tem dor e nem câncer, mas vive em tocas
subterrâneas!
Observatório
Era a cárie! – No países realmente desenvolvidos socialmente como Dinamarca,
Suécia, Noruega, Finlândia, Islândia e Nova Zelândia, a cárie e a doença periodontal
deixaram há muito tempo de ser a principal causa de perda dos dentes. Eventualmente
as pessoas nascem sem algum dente ou quando os perdem, ocorre por traumatismos
com fraturas ou pela reabsorção das raízes que as pancadas provocam!
Agora é trauma! – As elites dos países ricos e outros países aprenderam que para
eliminar a cárie e doença periodontal as pessoas precisam ser educadas a higienizar a
boca e a se alimentar adequadamente. No Brasil, nos últimos 16 anos, em certas
cidades e estados, o nível de redução foi muito grande. A cárie e a doença periodontal
está perdendo para o traumatismo dentário como a principal causa de perda dentária.