Coluna de Ciências

Pokémon e zumbi: desincorpora meu!

Como robô, Thiago caminhava pela rua, não enxergava ninguém e com os olhos fixos no além atravessava as ruas, driblando carros nos cruzamentos. Os demais pedestres que saíssem da frente, ele vai passar por cima! Um menino de 10 anos disse: pai, ele está drogado? Não, está usando fone na orelha e ouvindo música, ou coisa parecida, em volume alto e de forma muito concentrada. Outro menino indaga: ele bebeu? Não, está com fone de orelha!

Os “zumbis” de fone de orelha conseguem desligar o maior órgão do corpo: a pele! Nela, milhares de sensores com o mundo externo estariam ligados, mas eles nem percebem o mundo a interagir. Isto não é foco e concentração, é desligamento. É quase uma negação do mundo, uma necessidade de transitar aqui sem interagir. Quem passa ou atravessa seu caminho pouco importa! Nas faixas de pedestres representam um perigo.

Quem ouve música na rua ou centro de compras com fones de orelha curte a música ou o prazer do isolamento? Como ostras ou jabotis se resguardam, dizendo figuradamente: eu não quero vocês, me deixem, prefiro só! Mas, por que não ficam em casa? Por que a casa é muito pequena, tem que dividir com mais gente, ou se tem que obedecer alguém que não o deixa ficar assim isolado. Na rua ninguém perturba e com o fone se isola! Quantos tropeços, trombadas, quedas e outros acidentes afetam os que transitam pelas ruas a pé? E há os que fazem dirigindo!

Obsessão?

Ele parece não estar ali, seu espírito ou alma saiu, sua conexão mental está associada ao celular. O “ao redor” não existe: se está sozinho, em casa ou qualquer outro lugar sua atenção está voltada para a telinha. Se alguém resvala ou pede uma gentileza, se levanta, se esguia e com um sorrisinho continua desincorporado!

No momento da desconexão da telinha com qual dividia seu umbigo eletrônico e transmutação individual, nota-se uma sensação e gestos de quem está perdido no final de um transe. A reação é a mesma de quando um espírito desincorpora do corpo em um centro espírita kardecista, umbandista ou candomblé. Parece que calafrios e movimentos descoordenados toma conta daquele ser por um minuto, apenas por que o celular desligou e a conexão acabou.

Se conectado, ele tecla como maluco, ora rindo, ora carrancudo. É chamado pela senha na televisão para ser atendido pelos funcionários da receita federal. De supetão, levanta-se e vai procurar seu novo lugar. Logo sai pela porta que entrou, mais leve e a sorrir para ninguém, gingando desengonçado acompanhando a música no fone! Tenho certeza que se perguntarem a ele como era a sala ou pessoas que com ele compartilharam o ambiente não saberá responder!

Pokémon

No prédio, a porta abriu e fechou, ele nem percebeu. Falando e escutando ao fone, parecia falar sozinho. O funcionário entregou uma caixa e finalmente vi uma franca emoção naquela face movida a comandos longínquos de uma conexão qualquer: era um novo celular chegando! Apesar da esquisitice, o porteiro tinha boa relação com o morador e perguntou: por que trocou? - Ah este aqui dá pra ver melhor os Pokémon que vou encontrar.

Enquanto consultava a oftalmologista, Thiago disse: - Doutora me desculpe, mas preciso de um minuto para olhar atrás daquele aparelho, naquela parede tem um Pokémon, preciso pegá-lo. Não por coincidência, era o mesmo homem do fone de ouvido, da conexão e do prédio! A doutora pasmou.

Naquela consulta ficou muito feliz, conseguiu pegar um Pokémon muito raro. Saindo da clínica, esperando para atravessar a calçada do ponto de ônibus outro Pokémon, mas perdeu por estar incorporado no celular ouvindo música. Não percebeu, o sinal estava vermelho, mas avançou assim mesmo, estava entusiasmado com o que via na tela do celular! O ônibus moeu o corpo de Thiago estatelado no chão!

Na despedida do corpo, o padre falava para cinco pessoas: ele foi um cara ligado com seu mundo, tinha uma vida espiritual riquíssima, era criativo e tinha visões além desse mundo e adorava as artes, especialmente a música! Sua vida foi muito rica em amigos e que anjos o leve para o céu!

Saí com tremenda dúvida: será que o padre estava sendo irônico? Adeus para mais um autômato! Ou seria zumbi? Eu heim! Desincorpora meu filho! Desaloje!