Coluna de Ciências

Sem Vander Lee: quem me traduzirás?

Você não devia ter ido, cedo demais! E agora quem cantarás meus sentimentos, quem vai por minhas ideias em poemas musicados! Quem não o conhecia já ouviu ou cantou músicas de Vander Lee. A qualidade sonora e poética me fazer lembrar Milton Nascimento e Djavan. Quantas vezes saí por aí no carro cantando ou caminhando soletrando sua música “Onde Deus possa me ouvir”:

“Sabe o que eu queria agora, meu bem. Sair, chegar lá fora e encontrar alguém que não me dissesse nada, não me perguntasse nada também. Que me oferecesse um colo, um ombro onde eu desaguasse todo o desengano, mas a vida anda louca, as pessoas andam tristes, meus amigos são amigos de ninguém. Sabe o que eu mais quero agora, meu amor? Morar no interior do meu interior, pra entender por que se agridem, se empurram pro abismo, se debatem, se combatem sem saber meu amor. Deixa eu chorar até cansar, me leve pra qualquer lugar aonde Deus possa ouvir minha dor. Eu não consigo compreender, eu quero algo pra beber, me deixe aqui, pode sair, adeus!”

Todos viram o mundo dar solavancos a racharem as pedras da soleira em suas portas. Quantas vezes acordei e vi, de novo, rachaduras nas paredes! Som alto e lágrimas permeavam as palavras em “Meu Jardim”: “Tô relendo minha lida, minha alma, meus amores …Estou podando meu jardim!”

Nos anos vividos, quantas aflições e emoções! Quantas perguntas me fizeram, quantos questionamentos por respostas imediatas. Muitas vezes, uma música respondia, mas as de Vander Lee tem leveza na explicitude, tem coincidência do “parece que fui eu que fiz esta letra”! Com o poeta, se foi um pedaço de mim! Como oração, as vezes dormia escutando “Alma Nua”:

“Ó Pai, não deixes que façam de mim, o que da pedra tu fizestes. E que a fria luz da razão, não cale o azul da aura que me vestes. Dá-me leveza nas mãos, fazes de mim um nobre domador. Laçando acordes e versos, dispersos no tempo, pro templo do amor. Que se eu tiver que ficar nu, hei de envolver-me em pura poesia. E dela farei minha casa, minha asa, loucura de cada dia. Dá-me o silêncio da noite pra ouvir o sapo namorando a lua. Dá-me direito ao açoite, ao ócio, ao cio. À vadiagem pela rua. Deixa-me perder a hora, pra ter tempo de encontrar a rima.

Ver o mundo de dentro pra fora, e a beleza que aflora de baixo pra cima. Ó meu Pai, dá-me o direito, de dizer coisas sem sentido. De não ter que ser perfeito, pretérito, sujeito, artigo definido. De me apaixonar todo dia, de ser mais jovem que meu filho. E ir aprendendo com ele a magia de nunca perder o brilho. Virar os dados do destino, de me contradizer, de não ter meta. Me reinventar, ser meu próprio Deus, viver menino e morrer poeta!”

A mente que mente, é o maior bem da vida. Sem a memória, somos ninguém. Disse Ernest Fischer que a poesia tira o homem da realidade, mas o devolve mais enriquecido! As músicas de Vander Lee faz isto: tira da realidade e tem efeito quase terapêutico! Notem a letra da música “Estrela” cantada por Bethânia:

“Trem do desejo penetrou na noite escura. Foi abrindo sem censura o ventre da morena terra. O orvalho vale a flor que nasce desse prazer. Nesse lampejo de dor, meu canto é só pra dizer que tudo isso é por ti. Eu vi, virei estrela. Uma jangada à deriva, à céu aberto leva aos corações despertos a sonhar com terras livres. Veio a manhã e eu parti, mas quando cheguei aqui, os astros podem contar: no dia em que me perdi, foi que aprendi a brilhar!”

A ciência tem a mesma amplitude das artes, uma fala à mente enquanto a outra, ao coração. Tudo faz parte de um mesmo cérebro que mente, pois o coração falseia e nem tem sentimentos. Os maiores cientistas do mundo são seres extremamente culturais, abertos para as coisas humanas e discussões sobre a vida e os modos! Se o cara é muito bom em suas investigações e não pensa em mais nada, deve-se tratar de um grande pesquisador. Eis a diferença com o cientista: além de grande pesquisador, é pensador, questionador e, acima de tudo, um sedento em viver sem medo na amplitude ímpar!

Quando alguém como Vander Lee se vai, todos morrem um pouquinho, incluindo a ciência de viver! Mas, quem morre mais é o amor, pois ele mesmo dizia em sua música, talvez a mais conhecida: românticos é uma espécie em extinção!